'A gente só tem direito ao chão?': nas madrugadas de inverno no Rio, população de rua relata que tem cobertas e colchões apreendidos

Pessoas em situação de rua lutam contra o frio, a fome e ações repreensivas da prefeitura “Tio, o senhor me dá um cobertor pra eu deitar ali?” “Tia, ...

'A gente só tem direito ao chão?': nas madrugadas de inverno no Rio, população de rua relata que tem cobertas e colchões apreendidos
'A gente só tem direito ao chão?': nas madrugadas de inverno no Rio, população de rua relata que tem cobertas e colchões apreendidos (Foto: Reprodução)

Pessoas em situação de rua lutam contra o frio, a fome e ações repreensivas da prefeitura “Tio, o senhor me dá um cobertor pra eu deitar ali?” “Tia, a senhora não sabe o frio que está fazendo.” “Tem sido difícil sobreviver.” Frases como essas se repetem nas madrugadas frias do Rio de Janeiro, ditas por pessoas em situação de rua que enfrentam a fome e o frio sem nenhuma estrutura. De Copacabana à Lapa, da Glória à Ilha do Governador, o g1 rodou pela cidade e presenciou cenas de vulnerabilidade que se espalham pelas calçadas. Sem proteção adequada, homens, mulheres, crianças e até idosos improvisam com papelões, sacos plásticos e pedaços de cortina para tentar se proteger das baixas temperaturas. Para piorar, precisam lutar para não perder o pouco que têm: seja em furtos de criminosos ou em ações de ordenamento da Prefeitura do Rio. Segundo relatos ao g1 e vídeos em redes sociais, agentes da Secretaria de Ordem Pública têm recolhido cobertores e outros itens de quem dorme pelas ruas. Homens se abrigam do frio em marquise no Rio de Janeiro Stephanie Rodrigues/g1 Um vídeo feito pela ONG É Por Amor mostra agentes da Seop removendo papelões de homens que dormiam sobre eles em Copacabana, na Zona Sul do Rio, na noite da última segunda-feira (15) (veja acima). “A gente distribuindo quentinhas e a ‘Ordem Pública’ fazendo o trabalho deles”, escreveu a ONG nas redes sociais. "Até quando teremos que ver as pessoas em situação de rua terem o pouco que tem sendo levado por uma política higienista? Essas pessoas precisam de política pública e não de apanhar de cassetete”, acrescentou a organização. Defensora pública aponta que ações de ordenamento contra pessoas em situação de rua no Rio ferem Direitos Humanos e ADPF Situações como essa foram relatadas por pessoas em situação de rua ao g1 em diferentes pontos da cidade. Isso em uma época em que tradicional calor do Rio dá lugar a noites com um frio que o carioca não está acostumado. Segundo a Climatempo, julho já teve oito madrugadas com temperaturas abaixo de 13 °C. A mais baixa foi registrada no dia 16: 10,7 °C. Menores temperaturas de julho de 2025 no Rio, segundo a Climatempo Arte g1 Na Praça da Cruz Vermelha, no Centro, uma mulher que estava com as netas de 6 e 9 anos em busca de doações relatou que quase teve suas sacolas, com roupas e documentos, levadas por agentes – os nomes dos entrevistados em situação de rua foram preservados na reportagem. “Quando eles veem os moradores de rua com sacolas, colchão, cobertores volumosos, eles vêm logo e tomam tudo. Esses dias, eu estava sentada aqui com as minhas sacolas esperando quentinha, eles já vieram botando a mão pra tirar. Eu tive que explicar que moro na ocupação, não na rua, e que tô aqui porque tô desempregada”, relatou. Pessoas em situação de rua dormem na calçada da Praça da Cruz Vermelha Stephanie Rodrigues/g1 Na Praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana, um grupo disse que a doação tem sido pouca nos arredores, e as ações de ordenamento da prefeitura têm sido mais frequentes. “Eles tiram o pouco que a gente tem. Eu estava com uma colcha grossa e levaram. A gente tenta fugir do sereno, mas quando chove é impossível. Não dorme, só treme”, diz um homem. Coberto por sacos plásticos, morador de rua enfrenta o frio do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Até colchões têm sido retirados, contam: “Se não tiver ninguém, ninguém mexe. Mas se um de nós deitar em cima, eles vêm e pegam. A gente só tem direito ao chão? Ao frio?” Agressões e ameaças Em frente a uma agência bancária, um homem contou que agentes da prefeitura usam cassetetes contra quem resiste ao recolhimento: “Eu estava com um cobertor grossão, quentinho, estava dando pra me manter de madrugada tranquilo. Veio a Ordem e me tomou. E não tem desenrolo. Se eu falar algo, eles vêm com o cassetete e descem a porrada”, conta o homem. Ao lado dele, uma mulher que cata recicláveis relatou uma cena de violência: “Não tem muito tempo, tivemos que levar um moço que dorme aqui pro Miguel Couto porque ele já estava com um resfriado muito forte, foi brigar com a Guarda [Municipal] e apanhou tanto que não conseguia respirar. Eles não querem saber se a gente tá com frio, não tem desenrolo, desenrolo na rua é porrada”. Ações solidárias Na Praça da Cruz Vermelha, no Centro, a ordem dos agentes, segundo os moradores de rua, é clara: não se pode mais dormir no centro da praça — só nas marquises. Na última segunda-feira (15), o g1 esteve no local e viu dezenas de pessoas se amontoando; o interior da praça, por sua vez, estava vazio. O cobertor, escasso, é distribuído principalmente por voluntários. Em uma das ações da ONG Ação entre Amigos, na Avenida Presidente Vargas, grávidas e crianças estavam entre as dezenas de pessoas na fila por uma quentinha e um agasalho. O grupo, ligado à Paróquia da Santíssima Trindade, no Catete, atua semanalmente com distribuição de cerca de 200 refeições e roupas. O g1 acompanhou uma das ações, que durou pouco mais de 1 hora. “A senhora não sabe o frio que tem feito de madrugada na rua, tia”, disse uma menina. Outra frente de apoio, a ORES (Organização de Reintegração e Estímulo à Socialização), da Ilha do Governador, atua com advogados e assistentes sociais para ajudar pessoas em situação de rua a conseguirem documentos e acesso a direitos, como benefícios, além de outras ações como doações de roupas, lanches e acesso a banhos e itens de higiene. ✅Siga o canal do g1 Rio no WhatsApp e receba as notícias do Grande Rio direto no seu celular. Furtos Uma mulher atendida pela Ores relatou que furtos e roubos também são um problema para quem vive na rua. “A gente pega e recebe uma roupa, um agasalho, mas quando dorme, levam. Agora, estou com um cobertor, mas não sei até quando." ONG filma equipes do município do Rio recolhendo papelões de pessoas em situação de rua  O que diz a prefeitura O g1 entrou em contato com a Secretaria de Ordem Pública e teve como resposta que a pasta "realiza diariamente ações de ordenamento urbano, desobstrução de áreas públicas e acolhimento a pessoas em situação de rua (neste caso, em apoio à Secretaria Municipal de Assistência Social - SMAS)." Segundo a secretaria, as ações acontecem em pontos diferentes da cidade, "com foco especial em áreas com grande concentração de usuários de drogas". Ainda de acordo com a nota, desde janeiro deste ano foram apreendidos mais de 4 mil objetos perfurocortantes, cerca de 2 mil itens utilizados para consumo de drogas e 28 réplicas de armas. No entanto, a Secretaria de Ordem Pública não se posicionou sobre as denúncias de apreensões de cobertores, papelões, colchões e outros itens pertencentes às pessoas em situação de rua. O g1 voltou a questionar sobre esse tema e não teve resposta. Questionada, a Secretaria Municipal de Assistência Social disse que, no primeiro semestre de 2025, foram criadas 250 novas vagas permanentes de acolhimento para pessoas em situação de rua e que com a chegada do inverno foram abertas mais 160 vagas temporárias em equipamentos da rede e espaços privados. “Os acolhidos dormem em local seguro, protegidos do frio e com direito a alimentação, kit de higiene, cobertor e roupa de cama”, afirma o posicionamento. “A rede de acolhimento dispõe de 2.707 vagas regulares. É importante destacar que o acolhimento não é obrigatório, assim como a permanência nos equipamentos: ambos dependem da aceitação da pessoa em situação de rua, e um mesmo indivíduo pode ser acolhido mais de uma vez”, continua a nota enviada pela pasta. De janeiro a junho deste ano, foram registrados 22.946 acolhimentos — um aumento de 261% em relação ao mesmo período de 2024, segundo a secretaria. A secretaria disse ainda que não precisa de documento para acessar os abrigos, uma vez identificada a necessidade, mas ressaltou que o acolhimento não é compulsório: depende da aceitação da pessoa em situação de rua. Por que não ir a abrigos? Ao serem questionados por que não procuram os abrigos ou dormitórios da prefeitura, muitos responderam: “Lá é pior.” Entre os motivos apontados estão a convivência com pessoas sob efeito de drogas e os constantes furtos. Outro fator é o vínculo com os animais que cuidam nas ruas — os cães são fonte de afeto e também ajudam a aquecer nas madrugadas frias. A Secretaria Municipal de Assistência Social disse que os abrigos as regras são "as da boa convivência e do respeito aos direitos de todos" e que "em casos de dependência química, o acolhido é encaminhado a tratamento em unidade de saúde do território de acolhimento." Pessoa improvisa cobertores para se proteger do frio em avenida do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Perfil da população de rua no Rio Segundo o último balanço da prefeitura do Rio, divulgado em 2023, quase 8 mil pessoas viviam nas ruas da cidade. O censo mostrou que 1.227 pessoas deles enfrentam a dependência química. Números sobre a população em situação de rua no Rio Arte g1 Números do levantamento: 7.865 pessoas vivem nas ruas da cidade — aumento de 8,2% em relação a 2020; 82% são homens; 84% se autodeclaram pretos ou pardos; 64% têm ensino fundamental incompleto; 11% não sabem ler ou escrever bilhetes simples; 40,5% têm entre 31 e 49 anos; 446 são idosos — alta de 26% desde 2020; 55% dos idosos têm algum tipo de deficiência; 1.227 enfrentam a dependência química. O número de idosos nas ruas aumentou 26% em comparação com os dados de 2020, totalizando 446 pessoas. Desse total, 91% têm idade entre 60 e 69 anos. Mais da metade dos idosos que não possuem lar (55%) têm algum tipo de deficiência. Para driblar o frio, um idoso estava deitado sob um colchão feito com caixas de leite costuradas uma a uma em uma passarela na Ilha do Governador (veja na imagem abaixo). A parte metálica da caixa de leite ajuda a isolar a temperatura. Idoso usa caixa de leite como colchão no Rio Thaís Espírito Santo/g1 Na Lapa, pessoa em situação de rua dorme direto no concreto apenas com cobertor Stephanie Rodrigues/g1 Homem usa caixas de papelão para se abrigar do frio, no Rio Stephanie Rodrigues/g1 Homem ao relento deita na saída de ar de bueiros na Avenida Presidente Vargas Stephanie Rodrigues/g1 Apenas com um cobertor, morador de rua tenta se aquecer em mais uma madrugada gelada no Rio Stephanie Rodrigues/g1 Pessoa cadeirante em situação de rua se abriga do frio em marquise no Rio Stephanie Rodrigues/g1 Cachorros observam enquanto pessoas em situação de rua dormem Stephanie Rodrigues/g1 Com o frio chegando ao Rio, quem vive nas ruas improvisa abrigo como pode Stephanie Rodrigues/g1 Pessoa em situação de rua dorme em esteira em calçada do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Homem se enrola em cobertor em frente ao Theatro Municipal do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Enquanto o Rio dorme, o frio castiga quem vive nas ruas Stephanie Rodrigues/g1 No frio do Rio, quem está em situação de rua transforma calçada em abrigo Stephanie Rodrigues/g1 Ao relento, homem tenta se aquecer durante madrugada fria na Lapa Stephanie Rodrigues/g1 Homem dorme no canteiro central da Avenida Presidente Vargas Stephanie Rodrigues/g1 Em tempos de frio, cada canto vira tentativa de abrigo no Centro do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Homens se protegem do frio em marquise no Centro do Rio Stephanie Rodrigues/g1 Pessoas em situação de rua tentam se proteger do frio em noite gelada no Rio Stephanie Rodrigues/g1